Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.
Comentário de Stewart Salmond
O primeiro versículo se sustenta por si só. Ele serve como um título para a narrativa como um todo, ou, talvez, para o parágrafo relacionado ao Precursor. Esse versículo introduz o tema que será abordado no livro, bem como o ponto de partida histórico. O tema é “o evangelho de Jesus Cristo”, isto é, a boa notícia a respeito de Jesus Cristo, o Messias tão aguardado, que agora veio e foi visto pelos homens cumprindo sua vocação divina. Quando João Batista apareceu anunciando alguém mais poderoso que viria depois dele, as boas novas da concretização da promessa de Deus e da esperança de Israel começaram a ser cumpridas.
Evangelho. Essa palavra representa um termo grego que, na literatura antiga, significava um presente ou recompensa por boas notícias, mais tarde um sacrifício ou oferta de gratidão pelas mesmas, e, posteriormente, as próprias boas novas. Na tradução grega do Antigo Testamento, aplica-se geralmente a qualquer tipo de “boa notícia” (por exemplo, 2Samuel 4:10; 2Reis 7:9), e especificamente ao anúncio profético da vinda do reino messiânico (Isaías 61:1-2). No Novo Testamento, está intimamente relacionada com a grande ideia do reino de Deus, significando definitivamente “as boas novas do reino do Messias” (Mateus 4:23, 9:35, 24:14, etc.). Este versículo é o único nos quatro evangelhos em que aparece a frase específica “o evangelho de Jesus Cristo”. Em outros lugares, é chamado simplesmente de “o evangelho”, ou “o evangelho de Deus” (Marcos 1:14), ou “o evangelho do reino”. Nos evangelhos, a ideia predominante é a de boas novas proclamadas ou trazidas por Cristo. Nas cartas, refere-se às boas novas sobre Cristo. Mesmo nos evangelhos, o termo às vezes está ligado de forma significativa à pessoa de Cristo, como nas palavras “por minha causa e por causa do evangelho” (Marcos 8:35; cf. 10:29); e, neste versículo de abertura de Marcos, vemos a transição de “as boas novas trazidas por Cristo” para “as boas novas sobre Cristo”. Paulo usa o termo com maior frequência e variedade de aplicações do que qualquer outro escritor do Novo Testamento. O termo aparece uma vez em Pedro (1Pedro 4:17), uma vez no Apocalipse (14:6), duas vezes em Atos (15:7, 20:24), quatro vezes em Mateus, oito vezes em Marcos, nenhuma vez em Tiago, Lucas, João ou Hebreus, mas cerca de cinquenta e oito vezes nas epístolas atribuídas a Paulo.
de Jesus Cristo. A pessoa cujo ministério será o tema da narrativa de Marcos é apresentada desde o início com certa completude. Primeiro, ele é chamado pelo nome pessoal “Jesus” — um nome comum entre os judeus, idêntico ao nome do Antigo Testamento “Josué” (Números 13:16), também conhecido como “Jesuá” após o Exílio (Neemias 7:7), que significa provavelmente “salvação de Yahweh” ou “salvação de Deus”. Em seguida, temos o título oficial “Cristo”, que no Novo Testamento corresponde à palavra hebraica para “Ungido”, “Messias”. Na tradição de Israel, aqueles que ocupavam cargos eram ungidos, como o sacerdote (Levítico 4:3, 5:16, 6:15; Salmo 105:15). Contudo, no Antigo Testamento, o rei é particularmente mencionado como ungido (1Samuel 24:7, 11; Salmo 2:2; Isaías 44:1), e em Daniel (9:25), o Messias é descrito como “príncipe”. Assim, o termo “Messias” ou “Cristo” tornou-se um nome teocrático, expressando a ideia de que aquele que viria para restaurar Israel seria um rei, descendente da linhagem de Davi. No Livro de Enoque, provavelmente escrito no final do segundo século a.C., e na literatura judaica posterior não canônica, o termo é usado para se referir ao rei messiânico. Contudo, com o tempo, esse sentido oficial foi se perdendo, e o termo “Cristo” tornou-se um nome pessoal, assim como “Jesus”. Esse uso é mais comum em Atos e nas Epístolas. Nos Evangelhos, exceto em algumas passagens, especialmente nos inícios, o termo ainda mantém seu sentido técnico e é melhor traduzido como “o Cristo”.
Filho de Deus. Ao nome pessoal e oficial de Jesus é acrescentado um terceiro título, não “Filho de Davi” ou “Filho de Abraão”, como no início do Evangelho de Mateus, mas “Filho de Deus”. Embora esse título seja omitido em alguns manuscritos muito antigos, as evidências a favor de sua inclusão no texto genuíno são fortes o suficiente para considerá-lo autêntico. É um título importante. Ele aparece (sem contar as formas equivalentes como “o Filho”, “o unigênito”, “meu Filho amado”, etc.) cerca de nove vezes em Mateus, quatro vezes em Marcos, seis vezes em Lucas e dez vezes em João. O título “Filho de Deus” é usado tanto por outros quanto pelo próprio Cristo. Nos três primeiros evangelhos, há apenas um caso em que Jesus usa diretamente essa frase para si mesmo (Mateus 27:43); no entanto, há diversas ocasiões em que ele a aplica indiretamente ou com termos de significado similar. Esse título expressa sua relação peculiar com Deus, uma relação de unidade, mas com distinção; da mesma forma que o título “Filho do Homem” expressa sua relação peculiar com a humanidade. Esses dois títulos, como usados no Novo Testamento, têm suas raízes no Antigo Testamento: o título “Filho do Homem” está ligado à figura descrita em Daniel, e o título “Filho de Deus” está relacionado ao filho de Yahweh mencionado no Salmo 2. Ambos também ocorrem nos escritos não canônicos e devem ser interpretados à luz desses textos.
Nesta declaração inicial, o evangelista Marcos dá sua própria visão sobre o grande tema de sua narrativa. Aqui, portanto, o título designa o sujeito como o Messias, mas (como Meyer coloca corretamente) “no entendimento crente da filiação metafísica de Deus”. Para Marcos, escrevendo depois do ministério, da morte e da ressurreição, a pessoa cuja vida ele registra é o Messias, mas também alguém relacionado a Deus por natureza, tendo seu ser de Deus como um filho tem seu ser de seu pai. [Salmond, 1906]
<Todas as Escrituras em português citadas são da Bíblia Livre (BLIVRE), Copyright © Diego Santos, Mario Sérgio, e Marco Teles, com adaptação de Luan Lessa – janeiro de 2021.