Introdução ao Salmo 2
O autor. Este salmo, como o anterior, não tem nenhum título prefixado a ele e, assim, não tem nada no próprio salmo que indique sua autoria. Sua autoria deve ser obtida, portanto, em outro lugar, se é que ela pode ser determinada. Há, entretanto, todas as razões para supor que Davi foi o autor; e por aqueles que admitem a autoridade do Novo Testamento, isso não será posto em dúvida. As razões para supor que sua autoria deve ser atribuída a Davi são as seguintes:
(a) É expressamente atribuído a ele em Atos 4:25-26: “por boca de Davi, nosso pai, teu servo: “Por que se enfureceram os gentios, e os povos imaginaram coisas vãs?” etc. Não pode haver dúvida de que este salmo é aqui referido, e a citação desta maneira prova que este era o entendimento comum entre os judeus. Pode-se presumir que, em um assunto desse tipo, a tradição geral provavelmente estaria correta; e para aqueles que admitem que a inspiração dos apóstolos tem relação com pontos como este, o fato de ser citado como produção de Davi é decisivo.
(b) Esta é a opinião comum a respeito de sua origem entre os escritores hebreus. Kimchi e Aben Ezra expressamente atribuem isso a Davi, e é suposto que expressem nisto a opinião predominante do povo hebreu.
(c) Seu lugar entre os Salmos de Davi pode, talvez, ser considerado como uma circunstância que indica a mesma coisa. Assim, até o salmo septuagésimo segunto não há nenhum que seja expressamente atribuído a qualquer outro autor além de Davi (exceto o Salmo 50, que é atribuído a Asafe), embora haja há vários cujos autores não são mencionados; e a impressão comum é que esta parte do Livro dos Salmos foi organizada desta maneira porque o organizador dos Salmos entendeu como tendo sido compostas por ele.
(d) O caráter da composição está de acordo com esta suposição. É verdade, de fato, que nada pode ser certamente inferido desta consideração a respeito de sua autoria; e deve-se admitir que não existem peculiaridades no estilo que provem que Davi é o autor. Mas a observação agora feita é que não há nada inconsistente com esta suposição, e que não há nada no sentimento, no estilo ou nas alusões, que possa não ter saído de sua pena, ou que não seria apropriado na suposição que ele era o autor. A única objeção que poderia ser levantada a isso seria derivada de Salmo 2:6, “Coloquei o meu Rei sobre o meu santo monte de Sião.” Mas isso será considerado em outro lugar.
O momento em que foi escrito. Como não podemos determinar com certeza absoluta quem foi o autor, é claro que não é possível determinar o momento exato em que foi composto; nem, se for admitido que Davi foi o autor, podemos agora averiguar qual foi a ocasião em que foi escrito. Não há nomes de reis e pessoas que são representadas como conspirando contra o Ungido, que é o assunto principal do salmo; e não há qualquer alusão local, exceto na única frase o “monte de Sião”, em Salmo 2:6. A probabilidade parece ser que o salmo não foi projetado para se referir a qualquer coisa que tenha ocorrido na época do próprio autor, mas, como será visto em outra parte destas observações introdutórias, que o escritor pretendia referem-se principalmente ao Messias, que viria em uma época distante, embora isso possa ter sido sugerido por algo que aconteceu na época do escritor.
A oposição feita ao próprio Davi pelas nações vizinhas, suas tentativas de subjugar o povo hebreu e a si mesmo como seu rei, o fato de que Deus lhe deu a vitória sobre seus inimigos e o estabeleceu como o rei de seu povo, e a prosperidade e triunfo que ele experimentou, pode ter dado origem às ideias e imagens do salmo, e pode tê-lo levado a compô-lo com referência ao Messias, entre cujo tratamento e o seu haveria uma semelhança tão forte, que aquele poderia sugerir o outro. Se conjecturas podem ser permitidas onde é impossível ter certeza, pode-se supor que o salmo foi composto por Davi após o término das guerras nas quais ele se envolveu com as nações vizinhas, e nas quais ele lutou pelo estabelecimento de seu trono e reino; e depois que ele foi pacífica e triunfantemente estabelecido como governante sobre o povo de Deus. Então, seria natural comparar sua própria sorte com a do Filho de Deus, o futuro Messias, que seria, em sua natureza humana, seu descendente; contra quem os governantes da Terra também “se enfureceram”, como fizeram contra ele; a quem foi o propósito de Deus estabelecer em um trono permanente, apesar de toda oposição, como ele o havia estabelecido em seu trono; e que balançaria um cetro sobre as nações da terra, do qual o cetro que ele balançava poderia ser considerado um emblema.
Assim entendido, ele não tinha, em sua composição original, nenhuma referência particular ao próprio Davi, ou a Salomão, como Paulus supunha, ou a qualquer outro dos reis de Israel; mas deve ser considerado como tendo única referência ao Messias, numa linguagem sugerida por eventos que tinham ocorrido na história de Davi, o autor. É composto das reflexões tranquilas e agradáveis de quem, diante de muita oposição, havia se empenhado em estabelecer seu próprio trono, agora ansioso pelas cenas semelhantes de conflito e de triunfo pelas quais o Ungido passaria.
A estrutura e o conteúdo do salmo. O salmo é extremamente uniforme em sua composição e tem em sua estrutura um caráter dramático. Naturalmente, ele se divide em quatro partes, de três versos cada.
I. Na primeira (Salmo 2:1-3), a conduta e os propósitos das nações em fúria são descritos. Eles estão na mais profunda agitação, formando planos contra Yahweh e Seu Ungido, e unindo seus conselhos para romper suas amarras e abandonar sua autoridade, isto é, como mostra o Salmo 2:6, para impedir o estabelecimento do Ungido como Rei no monte sagrado de Sião. A abertura do salmo é ousada e abrupta. O salmista olha repentinamente para as nações e as vê em violenta comoção.
II. Na segunda parte (Salmo 2:4-6), os sentimentos e propósitos de Deus são descritos. Está implícito que ele formou o propósito, por um decreto fixo (compare Salmo 2:7), de estabelecer seu Ungido como rei, e agora ele se senta tranquilamente nos céus e olha com escárnio para os planos inúteis daqueles que se opõem a ele. Ele sorri diante da raiva impotente deles e segue em frente com firmeza na realização de seu plano. Ele declara solenemente que estabeleceu seu Rei em seu monte sagrado de Sião e, consequentemente, que todos os esforços deles serão em vão.
III. Na terceira parte (Salmo 2:7-9), o próprio Rei, o Ungido, fala e declara o decreto que havia sido formado em relação a ele, e a promessa que havia sido feita a ele. Esse decreto era que ele deveria ser declarado o próprio Filho do Senhor; a promessa era que ele deveria, a seu próprio pedido, possuir as nações da terra e governá-las com um cetro absoluto.
4. Na quarta parte (Salmo 2:10-12), o salmista exorta os governantes das nações a cederem às reivindicações do Ungido, ameaçando a ira divina sobre aqueles que o rejeitassem e prometendo uma bênção para aqueles que confiariam nele.
O salmo é, portanto, uniformemente construído, e o pensamento principal é perseguido por todo ele – as reivindicações exaltadas e o triunfo final daquele que é aqui chamado de “o Ungido”; a vaidade da oposição aos seus decretos; e o dever e a vantagem de ceder à sua autoridade. “As várias frases também são muito regulares na forma, exibindo paralelismos de grande uniformidade.” (Alexander). O salmo, em sua construção, é um dos mais perfeitos do Livro dos Salmos, segundo o ideal especial da poesia hebraica.
A quem o salmo se refere? Pode haver apenas três opiniões quanto à pergunta a quem o salmo foi elaborado para se referir:
(a) Aquela em que se supõe que se refere exclusivamente a Davi, ou a algum outro dos reis ungidos de Israel;
(b) aquela em que se supõe que tinha essa referência original, mas também tem uma referência secundária ao Messias; e
(c) aquele em que se supõe que tem referência exclusiva e única ao Messias.
Poucos são os que mantêm a primeira dessas opiniões. Mesmo Grotius, a respeito de quem foi dito, em comparação com Cocceius, que “Cocceius encontrou Cristo em todos os lugares, e Grotius em lugar nenhum”, admite que, embora, em sua opinião, o salmo tinha uma referência primária a Davi e aos filisteus, moabitas, amonitas, edomitas, etc., como seus inimigos, porém, em um “sentido mais místico e obscuro, pertencia ao Messias.” As razões pelas quais o salmo não deve ser considerado como referindo-se exclusivamente a qualquer rei hebreu são conclusivas. Elas se resumem nesta: que as expressões no salmo são tais que não podem ser aplicadas exclusivamente a qualquer monarca hebraico. Isso aparecerá na exposição deste salmo. Por razões semelhantes, o salmo não pode ser considerado como destinado a referir-se principalmente a Davi e, em um sentido secundário e superior, ao Messias. Não há indicações no salmo de tal duplo sentido; e se não pode ser aplicado exclusivamente a Davi, não pode ser aplicado a ele de forma alguma.
O salmo, suponho, como Isaias 53:1-12, tinha uma referência original e exclusiva ao Messias. Isso pode ser demonstrado pelas seguintes considerações:
(1) É assim aplicado no Novo Testamento e não é citado de nenhuma outra maneira. Assim, em todo o grupo dos apóstolos é representado citando os primeiros versículos do salmo e se referindo a Cristo: “Ouvindo isto, unânimes, levantaram a voz a Deus e disseram: — Tu, Soberano Senhor, fizeste o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há! Disseste por meio do Espírito Santo, por boca de Davi, nosso pai, teu servo: ’Por que se enfureceram os gentios, e os povos imaginaram coisas vãs? Os reis da terra se levantaram, e as autoridades se juntaram contra o Senhor e contra o seu Ungido.’ Porque de fato, nesta cidade, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, se juntaram contra o teu santo Servo Jesus, a quem ungiste” (NAA). Se a autoridade dos apóstolos, portanto, deve ser admitida no caso, não pode haver dúvida de que o salmo pretendia referir-se ao Messias. Esta declaração dos apóstolos também pode ser apresentada como prova de que este era, provavelmente, o modo de interpretação predominante em sua época.
Novamente, o salmo é citado por Paulo (Atos 13:32-33) como aplicável a Cristo, e com referência ao fato de que era uma doutrina do Antigo Testamento que o Messias deveria ressuscitar dos mortos: “E nós vos declaramos Boas novas de que a promessa que foi feita aos pais, Deus a cumpriu para nós, seus filhos, porque ressuscitou a Jesus; como também está escrito no segundo salmo: Tu és meu Filho, hoje te gerei”. E novamente, em Hebreus 1:5, a mesma passagem é citada por Paulo para estabelecer a posição elevada do Messias como estando acima dos anjos: “Pois a qual dos anjos disse em qualquer tempo: Tu és meu Filho, neste dia eu te gerei? “ Essas citações provam que, na avaliação dos escritores do Novo Testamento, o salmo tinha uma referência original ao Messias; e a maneira pela qual eles fazem a citação prova que esta era a crença corrente dos judeus em seus dias, pois eles parecem não ter estado sob nenhuma apreensão de que a propriedade da aplicação que eles fizeram seria posta em questão.
(2) Mas, além disso, há outra evidência de que tal era a interpretação prevalecente entre os antigos hebreus: “Nos escritos judaicos mais antigos, como o Sohar, o Talmude, etc., há uma variedade de passagens nas quais a interpretação messiânica é dada ao salmo. Veja as coleções de Raym. Martini, Pug. Fid. ed. Carpzov., Em vários lugares, e por Schottgen, de Messia, pp. 227ss. Até Kimchi e Jarchi confessam que foi a interpretação predominante entre seus antepassados; e este último muito honestamente dá suas razões para se afastar dela, quando diz que prefere explicá-la de Davi, para a refutação dos hereges; isto é, a fim de destruir a força dos argumentos extraídos dela pelos cristãos”. (Hengstenberg)
(3) Que se refere ao Messias é manifesto a partir do próprio salmo. Isto será aparente a partir de algumas considerações secundárias.
(a) Não pode ser aplicada a Davi ou a qualquer outro rei terreno; isto é, existem expressões nele que não podem ser aplicadas com nenhum grau de propriedade a qualquer monarca terrestre. Essa observação se baseia principalmente no uso notável da palavra “Filho” no salmo, e na promessa de que “os confins da terra” deveriam ser colocados sob o controle daquele a quem essa palavra se aplica. A palavra “filho” é, de fato, de grande significado e, em certo sentido, aplicada aos justos no plural, como sendo filhos de Deus por adoção; mas não é assim aplicado no singular, e há uma peculiaridade em seu uso aqui que mostra que não se destinava a ser aplicado a um monarca terreno, ou a qualquer homem piedoso considerado filho de Deus. Essa denominação – o Filho de Deus – denota propriamente uma relação mais próxima com Deus do que pode ser aplicada a um mero mortal de qualquer categoria (compare as notas em Jo 5:18), e foi assim entendida pelos próprios judeus. Não é usado no Antigo Testamento, como aplicado a um monarca terreno, na forma como é empregado aqui.
(b) Há uma extensão de domínio e uma perpetuidade de império prometida aqui que não poderia ser aplicada a Davi ou a qualquer outro monarca, mas que é inteiramente aplicável ao Messias (veja Salmo 2:810).
(c) Essa também é a natureza da promessa para aqueles que colocam sua confiança nele, e a ameaça para aqueles que não lhe obedecem Salmo 2:12. Esta é uma linguagem que será vista imediatamente como inteiramente aplicável ao Messias, mas que não pode ser considerada assim em relação a qualquer monarca terrestre.
(d) Há uma forte probabilidade de que o salmo tenha sido elaborado para se referir ao Messias, pelo fato de que aqueles que negam isso não foram capazes de propor qualquer outra interpretação plausível, ou de mostrar com qualquer grau de probabilidade a quem se refere. Não houve reis ou príncipes israelitas a quem o salmo pudesse ser considerado com qualquer grau de probabilidade como aplicável, a menos que fosse Davi ou Salomão; e ainda assim, não há circunstâncias registradas em suas vidas às quais o salmo possa ser considerado adequado, e não há nenhum acordo substancial entre aqueles que sustentam que o salmo se refere a qualquer um deles. Tanto Rosenmuller como DeWette sustentam que não podem se relacionar com Davi ou Salomão. Alguns dos judeus modernos sustentam que foi composto por Davi no que diz respeito a si mesmo quando os filisteus o atacaram (2Samuel 5:17); mas esta é manifestamente uma opinião errônea, pois não só não havia nada na ocorrência lá para corresponder com a linguagem do salmo, mas não havia naquela época nenhuma consagração particular do monte de Sião, Salmo 2:6, nem aquele monte considerado santo ou sagrado até depois que o tabernáculo foi erguido nele, que foi depois da guerra dos filisteus. A mesma observação pode ser feita substancialmente a respeito da suposição de que se refere à rebelião de Absalão, ou a qualquer uma das circunstâncias em que Davi foi colocado. E há ainda menos razão para supor que se refira a Salomão, pois não há menção de qualquer rebelião contra ele; de qualquer tentativa geral de se livrar de seu jugo; de qualquer consagração solene dele como rei em consequência de, ou apesar de tal tentativa.
(e) O salmo concorda com o relato do Messias, ou em sua estrutura geral e detalhes aplicáveis a ele. Isso será mostrado na exposição e, de fato, é manifesto em sua aparência. A única objeção plausível a esse ponto de vista é, como afirma DeWette: “De acordo com a doutrina do Cristianismo, o Messias não é conquistador de nações, carregando um cetro de ferro; seu reino não é deste mundo”. Mas a isso pode ser respondido que tudo o que se quer dizer no Salmo 2:9 pode ser que ele estabelecerá um reino sobre as nações da terra; que todos os seus inimigos serão subjugados sob ele; e que o seu cetro será firme e irresistível.
Pode-se acrescentar que o salmo é tal como se poderia esperar encontrar nos escritos poéticos dos hebreus, com os pontos de vista que eles nutriam sobre o Messias. O Messias prometido foi o objeto do mais profundo interesse para suas mentes. Todas as suas esperanças estavam centradas nele. […] Ele seria um Príncipe, um Conquistador, um Libertador, um Salvador. A ele os olhos da nação estavam dirigidos; seus rituais religiosos pomposos aludiam a ele (he was shadowed forth by their pompous religious rites), e seus poemas sagrados cantaram seu advento. O fato de encontrarmos um salmo inteiro composto com referência a ele, destinado a expor seu caráter e a glória de seu reinado, não é mais do que deveríamos esperar encontrar entre um povo onde a poesia é cultivada, e onde essas esperanças foram acalentadas em referência ao seu advento; e especialmente se a essa visão de sua poesia nacional, em si considerada, for acrescentada a ideia de que os poemas sagrados escreveram sob a influência da inspiração, nada é mais natural do que esperar encontrar uma composição poética tendo uma referência tão única e exclusiva. Nada teria sido mais antinatural do que isso, com estas visões e esperanças predominantes, e com o fato de que tanto do Antigo Testamento é poesia sagrada, não deveríamos ter encontrado tal produção como o segundo salmo, supondo que ele tivesse uma referência original e exclusiva ao Messias. [Barnes]
Visão geral de Salmos
“O livro dos Salmos foi projetado para ser o livro de orações do povo de Deus enquanto esperam o Messias e seu reino vindouro”. Tenha uma visão geral deste livro através de um breve vídeo produzido pelo BibleProject. (9 minutos)
Leia também uma introdução ao livro de Salmos.
Todas as Escrituras em português citadas são da Bíblia Livre (BLIVRE), Copyright © Diego Santos, Mario Sérgio, e Marco Teles, com adaptação de Luan Lessa – março de 2021.